terça-feira, 1 de novembro de 2016

Amanhã

Acorda, levanta.
Põe a máscara, encanta.
Liga as luzes, liga a TV.
Mostra e conta do A ao B.
E como é bonito, e como é belo
Aterrar no chão sem chinelo.

Pausa, intervalo, almoço.
Cerra a cortina, roi o osso.
Volta ao palco. Sorri, conta histórias.
Ignora a fome das vitórias.
E como é bonito, e como é belo
Fazer a barba com cutelo.

Volta a casa, só num passo.
Segue as regras a compasso.
Vai na linha, assobia.
Sente o fel da maresia.
E já é hora de baralhar.
Apanhar jogo, voltar a dar.
Já é hora de baralhar.
Dormir; talvez não acordar.

sábado, 9 de julho de 2016

Voz

Olha para a tua esquerda. Olha para a tua direita. O que vês? Pessoas. Pessoas que sabem. Pessoas que sabem o quê? Pessoas que sabem o que fazem. Sabem para onde querem ir e para onde vão. Sabem estar, sabem ser... humanas. Não vês lixo, lixo de gente. Não vês dejectos bípedes pois não?
O que é que tu fizeste para estar aqui? Volta para o chão que te pariu, anormal.
O quê que estás aqui ainda a fazer?! Olha para eles. OLHA PARA ELES, SEU ANIMALZINHO NOJENTO! Eles estão aqui porque merecem estar aqui. Ninguém te quer aqui. Vai-te embora, cão. Rodapé da humanidade. O teu lugar não é aqui, com as pessoas. O teu lugar é com as doenças dos ratos; para ver se te despachas.
Vai!
Livra-nos!

quinta-feira, 7 de julho de 2016

A Pastilha

A cabeça conta histórias.
Histórias de embalar.
O corpo escuta as histórias
Até acreditar.
E quando a noite chega
E quando a vontade falha,
O corpo só quer dormir
Enquanto a cabeça ralha.
Já fui por aí.
Sou sol nado e sol posto.
Já passei o que não vivi.
Já vivi a contragosto.

Engole a pastilha.
Engole a pastilha.
Engole a pastilha.
Engole a pastilha.

A cabeça sabe o que faz.
Sabe o corpo com a certeza
De quem já não olha para trás
De quem esconde debaixo da mesa.
E cala a voz,
Deixa-te dormir.
Há lugares bons a visitar.
E cala a voz,
Deixa-te ir.
Há um lugar à beira-mar.

Engole a pastilha.
Engole a pastilha.
Engole a pastilha.
Engole a pastilha.

sábado, 9 de abril de 2016

A Esplanada

Sexta-feira ao fim do dia, João e José amigos de longa data encontravam-se numa esplanada beira-rio. Todas as sextas feiras, já nem era necessário combinar. João saía às 18H00 e ia logo sentar-se de fronte para o rio enquanto José que sairía daqui por uma hora, não aparecia. Eram bedidas cervejas enquanto amigos conversavam sobre tudo, nada e a semana passada. Ambos usavam este tempo para relaxar e limpar da cabeça os dias perdidos. Foi num destes fins de tarde, interrompendo um período de silêncio e contemplação que, sem avisar, João notou:

- Fodasse! É estranho não é?
- O quê? -interrompeu José
- Aquela sensação parva que dá de repente. Que estavas melhor noutro lugar.
- Sozinho numa ilha paradisíaca com duas boazonas! Hehe! Aí é que eu queria estar!
- Não pá! Noutro lugar, caralho! Não aqui! Noutro lado qualquer, fora daqui.
- Hãn?!
- Sim, pá! Não te apetece às vezes não estar cá? Desaparecer. Dizer: "Epá isto foi bom; foi muito giro estar cá e tal mas agora vou embora. Xau Maria, xau maltinha. Dou por concluida a minha presença. Fui."
- Emigrares?
- Sim... ... ... da vida.
- ...
- Epá! O estranho é quando esta ideia te vem à cabeça nas alturas mais improváveis... Olha, nem vás mais longe: no outro dia, no aniversário do Luís. Estavamos lá todos satisfeitos a jantar, a recordar histórias, a rir... Lembras-te?
- Sim.
- De repente dou comigo a pensar em como é que me posso ir embora; sabes? e o mais assustador é que não sei quanto tempo é que estive ausente a planear isso.
- ...
- Estavamos ali todos. O grupo reunido: mulheres, namoradas, filhos de uns e de outros. Tudo satisfeito. E deu-me para olhar em redor e pôr-me a pensar que pronto, já chegava para mim e agora aqui como é que posso acabar?
- ...
- É parvo pensar num coisa dessas num sítio assim. É estranho.
- ...
- ...

João e José continuaram a encontrar-se todas as sextas-feiras às mesmas horas naquela esplanada. Esta conversa nunca mais se repetiu e nenhum deles voltou a abordar o assunto.

sábado, 5 de março de 2016

RespirAr

Custa respirar. Não estou cansado mas custa respirar. Parece que um peso se afunda sobre o peito e me obriga aspirar o ar com a boca. Falta o ar. Não há ar suficiente no mundo. Preciso de espaço, de mais ar! Tragam o ar! Quero o meu ar de volta.

O coração sobe à boca banhando de sangue a garganta. Sabe a desespero, sabe a inquietação, sabe a angústia. A cabeça inchada e quente quer cair ao chão e as pernas bamboleiam para sustentar o peso da carcaça. Afinal estou cansado.

Abram as janelas, preciso de apanhar ar. Abram as janelas, quero sair. Abram as janelas, porra! Quero ir embora!

domingo, 3 de janeiro de 2016

A Investigação

Quando ela entrou eu estava a dormir. Tinha-me deixado adormecer no escritório a ouvir a chuva. Chovia copiosamente há 4 dias seguidos e os esgotos estavam inundados. Fedia muito. Ou era disso ou era dos restos de comida rápida esquecidos pelo escritório e das beatas amontoadas em cinzeiros improvisados. As moscas tinham particular interesse num arquivo no canto da sala que já não era aberto à anos. Provavelmente cativadas por algum bolor formado com a humidade que escorre das paredes. A canalização do prédio já não funciona como antigamente... antigamente.

Ainda me lembro quando me mudei para cá. No início isto era só o meu escritório, um sítio para receber os clientes e guardar a papelada. Recordo o dia que mandei gravar na porta: Eduardo Vaz - Detective Privado. Tinha 26 aninhos e foi um dia glorioso. Na altura tinha mais cabelo, menos 15kg e ainda conseguia respirar sem problemas. Hoje não consigo encher os pulmões de ar sem desatar a tossir. A vida sorria-me e o futuro só me trazia esperança. Durante os primeiros anos a coisa ainda funcionou bem. Ainda havia trabalho. A cidade fervilhava de acção e eu não tinha mãos a medir. Ao fim de 3 anos cheguei mesmo a casar-me com a agora minha ex-mulher. Fizemos a lua-de-mel no Brasil. Ainda havia trabalho nesta cidade. Desses tempos não restou nada. As velhas industrias fecharam, o pequeno comércio acabou e a juventude zarpou em busca de oportunidades noutras paragens. Nesta cidade ficaram só os ratos e algumas velhas carcaças como eu que que já não querem ir para outro lado.

Foi por isso com surpresa que ouvi bater à porta do escritório que agora fazia também a vez de habitação:

- Não quero comprar nada. -lancei com desdém para a porta
- Boa noite. Peço desculpa, ainda é aqui o gabinete do Sr. Vaz, o detective? -respondeu uma rouca voz feminina do outro lado.
- É; mas se é para vir cobrar a dívida do Mãozinhas diz-lhe que na próxima seman...
- Não é isso -interrompeu a voz- o meu nome é Maria, sou filha do Doutor e tenho um assunto que gostaria de discutir consigo. Posso entrar para conversarmos um pouco?
- Claro, claro entre.

O Doutor, como era conhecido pelas gentes da terra, era o homem mais importante e rico da cidade. Herdara a fortuna da família e conseguiu capitalizar com a crise para somar ainda mais títulos e propriedades. Metade da cidade era dele e a outra metade trabalhava para ele.

Já há muito tempo que ninguém novo entrava naquela cave e certamente ninguém de tão fino recorte. Trazia o cabelo negro coberto por um lenço molhado da chuva e um vestido carmim.

-Peço desculpa pela desarrumação mas não estava a contar com a sua presença. Sente-se aqui. -disse eu, espanando toscamente com o braço uma cadeira poeirenta. Com a pressa derrubei algumas latas velhas que pingaram restos de cerveja morta e cinzas de tabaco para o chão.-Então? Em que a posso ajudar?
- Peço desculpa pelo adiantado da hora mas a situação que lhe venho expor é da máxima urgência.
- Diga, diga!
- O Doutor, meu pai, foi assassinado. Encontrámo-lo prostrado no chão junto a uma poça de sangue e já sem vida. Pedia-lhe que me acompanhasse imediatamente até à mansão para que nos pudesse ajudar a perceber o que realmente se passou. -depois de lhe ter expressado as minhas condolências, completou -Sei que deve parecer estranho estar a fazer-lhe este pedido quando poderia tão facilmente deixar as autoridades tomarem conta do caso mas a verdade é que, como deve saber, o meu pai tinha muitos inimigos e já não me é possível confiar em ninguém nesta cidade; nem mesmo na polícia! E quanto aos outros detectives, bem... digamos apenas que todos eles trabalhavam para o meu pai e que também não são confiáveis. Pode ajudar-me?

Anuí. Como poderia recusar a primeira oferta de trabalho em meses? Pedi-lhe apenas que me desse alguns minutos para lavar a cara e trocar de roupa antes de sairmos. À porta do prédio aguardava-nos o motorista no carro que nos conduziria até à grande mansão do Doutor.