terça-feira, 23 de setembro de 2014

A Caixa

Da sua infância de pouco se lembra. Lembra-se, a espaços da caixa e do que se lembra é da caixa.
Vivera ali toda a sua vida.

A caixa era branca. O chão era branco, o tecto era branco. As paredes eram... bem; as paredes ele nunca as tinha efectivamente visto; ficavam demasiado longe. Ele andava e andava e andava mas nunca chegava lá, estavam sempre no horizonte... brancas.

Nasceu ali e cresceu ali, sempre naquela caixa branca. Ali, onde o sol não nascia ou sequer punha, era só branco, dia após dia, o que quer que isso significasse. Ele aborrecia-se? Sim. Não. Talvez. Branco. Não conhecia tempo ou vida, espaço ou morte, pelo que se limitava a estar. Onde? Na Caixa. Quando? Na Caixa. Quanto? Na Caixa. Como? Na Caixa? Porquê? Na caix... porquê é que ele não sabia. Estava lá e tinha consciência que lá estava. Mas porquê?

Às vezes sonhava com outra coisa, um mundo fora da caixa. Aliás, -«um mundo em que havia como que outras caixas com gente lá dentro... mas estavam todas juntas... e não era bem várias caixas era só uma caixa grande, de todos... mas não era bem uma caixa porque não tinha limites, havia sempre mais uma caixa para além dessa... como um complexo de caixas infinito...» Não o sabia explicar muito bem, mas afinal o seu universo resumia-se a um espaço branco nu.

Nesses devaneios via-a se a viver noutro sítio, com cores, com cheiros, com outros como ele, e ainda outros nem tanto assim, vidas, sabores, acção, sentido, estímulos, emoções. Conceitos alienígenas que ele apenas podia imaginar, mas que lhe pareciam, à altura, simplesmente deliciosos. Forçava-se a entorpecer, adormecer e sonhar para chegar lá. Àquilo a que ele chamava Nirvana, à vida para além da caixa, daquela caixa, da sua caixa, dele.

Um dia adormeceu e quando acordou estava do lado de fora da caixa.
Passaram-se anos; ainda hoje quer voltar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O Poço

"Era tão novo!"

Tinha feito 11anos ainda agora. A festa do seu aniversário fora preenchida e agitada, estavam lá todos os seus amigos da escola, os vizinhos e os seus familiares. Brincou livremente, riu-se em barda e comeu guloseimas até fartar. Estava a ser a festa de aniversário com que qualquer criança sonha. A páginas tantas, a meio de mais um jogo de escondidas, escondeu-se atrás do poço que existia ao fundo do terreno, bem perto da ribeira . Ainda ninguém se tinha lembrado daquele esconderijo que, a seu ver, parecia perfeito para o efeito. Agachou-se atrás do muro empedrado e aguardou pelo momento ideal para escapar rumo à vitória. Porém, apesar das várias oportunidades de que dispôs para ganhar a partida, foi-se deixando ficar. Estava reluctante em sair daquele poiso e tentou ali permanecer o máximo de tempo, antes de ser inevitavelmente apanhado.

Nas semanas que se seguiram deu por si várias vezes fazendo desvios do seu trajecto escola-casa para junto daquele poço. Sentia-se ali tão bem, beira-poço. Parecia que o poço o chamava e o atraia quase misticamente. Permanecia ali tardes inteiras a admirá-lo e a perscutá-lo, a olhar para o seu interior e imaginar o que o estaria a chamar das pronfundezas. O que vivia para além de toda aquela escuridão? O que seria que o parecia aliciar? Não sabia responder, apenas sentia que o poço o desejava, tanto como ele desejava o poço.

Foi para ali durante alguns anos, tendo inclusivamente lá levado alguns dos seus amigos para tentar perceber discretamente se o poço tinha o mesmo efeito sobre eles mas ninguém parecia reagir aos encantos do poço. "Nem um sinal; nada. Serão eles imunes? Como é que não sentem? Olhem lá para baixo! É lindo!" -pensava incrédulo perante a aparente indiferença de todos os outros.

Tinha muita curiosidade em seguir o desejo e ir explorar o fundo mas nunca tinha junto a coragem. Já se tinha debruçado várias vezes para tentar perscrutar ou vislumbrar algum sinal do além-poço mas tinha sempre receio de avançar: "apesar de tudo não passa de um poço comum, e os poços não falam, nem chamam pessoas! ... ... ... mas é tão real..."

Um dia, tinha já 14anos desistiu de resistir e cedeu àquela ânsia e, num misto de nervosismo e excitação, decidiu descer. Lembrou-se de levar uma lanterna e uma corda, mas optou por não o fazer, já que o que quer que lá estivesse em baixo havia de guiá-lo, tal qual tinha feito até então.

E assim foi, nesse mesmo dia. Descalçou-se, abeirou-se do poço e desceu escalando para as aliciantes profundezas.

O seu cadáver foi encontrado 9dias depois. A autópsia declarou morte por afogamento.

Ele não gritou.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014