terça-feira, 1 de setembro de 2015

Apontamento

A liberdade é uma mentira. Ninguém é livre. Todo o Homem está acorrentado ao tempo; grilhetado em si. Apenas existe liberdade na morte porque não há muros que emparedem aquilo que não é.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Auto-Retrato

Olá!

Pus. Pus amarelo, pus verde. Os 2 juntos numa papa de pus. Visco. Sangue e pus. Sangue com pequenas creaturas minhoquiformes a rastejar e a comer a carne putrefacta da tua mãe morta. Um corpo sem braços com os ossos expostos no ombro sendo rapinados por aves e ratos doentes. Trampa. Qual trampa qual quê! É merda mesmo; BOSTA! Montes de bosta, com gente lá dentro a respirar bosta e a comer bosta. De vaca e de porco. Uma piscina inteira cheia de estrume e gente a dançar. O teu actor favorito, político, modelo, futebolista a merda que quiseres coberto de sémen de 1000 homens. O teu herói, pode ser o Papa ou o teu papá, todo esporrado e feliz da vida a inalar tudo o que pode pelo nariz. O mel-expecturação do teu chefe que vais barrar no pão. O gato atropelado, moribundo, a ganir pela vida, já com metade do focinho impresso no pneu dum carro qualquer, que vais ter de separar do asfalto com uma espátula. A tua querida irmãzinha estuprada.
O cheiro duma velha que mija nas cuecas, põe ao sol e volta a usar. Segunda a domingo. O naco de pelo e merda que se forma nos interstícios do cu e arrancas a custo. Aquele sabor agri-doce do vómito que sobe à garganta para voltar a  cair no estomâgo. Um pedaço de pele preenchida por um  mosaico de minúsculos buracos geométricos, como a casca viva de uma romã comida. A parte da frente de um acidente de comboio, aquela parte onde se vê os pedaços de gente a brotar do ferro fértil. A chaçina de milhares. Genocídio, fraticídio e suicídio. Cólera, dengue, bócia, AIDS, cancro e peste negra. Um imbecil, um cretino e um energumeno que entram num bar e...

Uma besta.

...e tu quem és?

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Vontade

A Maria tinha 7 anos. Era uma criança igual a tantas outras: adorava brincar, pintar e ir à escola. Já sabia as letras todas, algumas até em inglês! Gostava da Ana, da Lúcia, do Tó e do Jaime; só não gostava do Carlos que era um menino mau e dizia coisas feias. Adorava o pai como um super-herói e quando fosse grande havia de ser como a mãe, só que veterinária de animais bebés.

Tinha muitos brinquedos, bonecas, brindes, bolas, berlindes mas todos juntos não valiam o mesmo que o seu favorito: um urso de peluche

Tinha-lhe sido ofertado por seus avós, por quem tinha bastante estima mas sempre achou pessoas estranhas. Mais tarde viria a perceber que ursos de pelúcia e artefactos demais são comodidades que não havia no antigamente.

Era um urso comum castanho pardo mas era o seu brinquedo favorito. Até favorito demais. Levava-o para todo o lado sendo impossivel afastar-se dele. Havia um laço invisivel e inexplicável que os unia. Na imaginação da Maria o urso era uma criatura viva de pano e osso. Chamava-se Locke e tinha uma personalidade própria. Era urso mas não era parvo e falava, ria e chorava com ela. Estava sempre lá, sol ou chuva, partilhando a sabedoria que só um objecto inanimado pode.

O que ela menos gostava era quando a mãe punha o Locke na máquina de lavar e lhe substituia o cheiro a conforto quente por alfazema industrial: «- Oh Mã! Não é assim! Ele não gosta!»

Brincavam de tudo, ele tanto era monstro aterrador, como herói de BD e até tomava o chá das 5.

Um dia ela perdeu o Locke: "- Deixaste-o ficar esquecido nalgum lado. A gente bem te disse para não o levares contigo!" -disseram-lhe os pais. Depois desse dia ela nunca mais foi a mesma. Tinha vários outros brinquedos que rapidamente a fariam esquecer um urso de peluche barato mas tal nunca sucedeu.

Depois desse dia passava horas sentada a olhar vagamente. Para a frente, para a parede, para a rua, para os outros. Não fazia nada, limitava-se a olhar e a responder com monossílabos e névoa: «- Gostaste do filme? -sim» «- Então o quê que aprendeste hoje na escola? -hum... não sei... sim»

Foram feitas várias tentativas para a ajudar a sair da letargia, mas nenhuma das técnicas aconselhadas pela psicóloga resultou. «- Há-de ser uma fase! Deve estar a chegar à adolescência. Isso passa-lhe!» -alvitravam os sempre sabedouros vizinhos e os pais das outras crianças.

Depois dessa data nunca voltou a ser a mesma Maria. Era Maria de nome, mas desprovida de alma.

Certo dia mais tarde, os pais dela encontararam o Locke, amarrotado e rasgado, preso nas molas de um velho sofá. Mais que um boneco de peluche, tinham encontrado a saída para a apatia da sua filha, a derradeira solução para a resgatar dos fantasmas que a atormentavam.

Prepararam a revelação da boa nova com cuidado. Afinal, não queriam perder o 1º sorriso da filha em 2 anos. No fim de um jantar especial em que a mãe cozinhou o prato favorito da filha, daquela maneira que só as mães sabem cozinhar os pratos favoritos, ela agarrou no Locke e ofereceu-o à filha enquanto o pai gravava a cena tentando iludir a comoção.

Maria agarrou no peluche fitando-o nos olhos por largos segundos. Levantou-se da mesa, dirigiu-se à sua cama onde o encostou antes de voltar para a mesa e terminar a sua mousse de chocolate caseira.

Foi nesse instante que os pais da Maria perceberam que ela não tinha perdido um brinquedo especial.
Ela tinha perdido a Vontade.

E que coisa má de se perder ela é.