domingo, 23 de novembro de 2014

A Cidade

Cheira a morte. Esta cidade cheira a morte.


Os primeiros cairam de manhã. Cairam simplesmente no chão. Morreram onde estavam aquele instante fatal. Inicialmente foram vistos como curiosidades, góticas curiosidades, acasos mórbidos, mas à medida que a pandemia alastrou, instalou-se o pânico.
Os cadáveres amontoam-se nas ruas e cheira a morte. Cheira a morte por todo o lado.

Famílias inteiras preparam-se para o exílio entre paredes. São reforçadas janelas e portas com madeiras e chapas. São recolhidos bens alimentares: garrafões de água, latas de feijão e conservas, víveres vários. Foi emitido através da Rádio um comunicado oficial para acalmar os cidadãos: dizem que é seguro sair à rua. Mas o povo é sabido e não se acredita e ao fim dos primeiros dias já ninguém arrisca pisar fora da porta. Dizem que "é do ar", dizem que "é das plantas", "é o buraco d'ozone", "são essas modernices", "são os Amaricanos", "são os Russes", "é Deus", "é Diabo", "são os dois"...
Ninguém sabe qual a origem, mas o que é certo é que cheira a morte. É um facto que cheira a morte.

Ao fim da 1ªsemana o governo declara lei marcial e o exército invade as ruas. Escudados por equipamentos de protecção, amontoam e queimam cadáveres desfeitos e inertes. São abertas valas comuns em todas as praças e rotundas, para onde são arremessados e enterrados pedaços carbonizados de gente indeferenciada.
Cheira a morte. Agora mais que nunca cheira a morte.

Passou-se um mês e os militares saíram, pelo menos os que aqui não pereceram. Já não havia homens suficientes para controlar os danos. A cidade foi considerada como perdida. Foram montados postos de controlo a toda a volta e iniciou-se a construção da Barreira Sanitária de Segurança. 3 muros: um central alto, largo e forrado a chumbo, ladeado de duas paredes de betão e segurança. Arame farpado em todos e torres de vigia com atiradores a cada 200 metros.
Cheira a morte e agora a morte fez desta cidade seu lar.

Ao fim de 2meses e 3dias a cidade esta vazia. Pilhagens e pânico transformaram-na em ruína. Os pombos roem cadáveres no passeio e os ratos bicam corpos no asfalto enquanto baratas fazem das entranhas putrefactas dos caídos seu novo covil e salão. Há que chegue para todos e todos partilham irmãmente dos despojos nauseabundos. São 19H06 quando espreito pela janela. Sou o último cidadão com vida desta cidade sem. Vi partir pais, irmãos, camaradas. A cidade está encerrada para além de salvação e a Esperança está enterrada também numa vala sem nome. Tenho comigo uma garrafa aberta com cerveja velha e uma Glock 19 que saquei do coldre de um polícia falecido. Encosto a garrafa aos lábios e a arma às têmporas. Dou o trago de cerveja enquanto primo o gatilho.


Já está. Já não cheira a morte.

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